sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A casa dos Outros


Recebi o mail de uma antiga aluna que terminou o curso de enfermagem há dois anos. Segundo ela, um simples desabafo do dia a dia de uma enfermeira nos " cuidados continuados" em Portugal.
Os tais que se inventaram para que os Hospitais baixem a média de dias de internamento, um indicador de "eficiência" que os novos gestores querem, a qualquer preço. Relatos como este, conheço às dúzias. No nosso país, quase toda aquela "estrutura" (ou a falta dela) assenta na dedicação de enfermeiras e enfermeiros que se desgastam em dias assim, até chegarem ao ponto de "burnout"... em que tudo deixa de interessar-lhes e passam a ser autómatos vivos, de emoções mortas... Além dos enfermeiros, a tal "eficiência" também assenta no sacrifício de familiares que, sem meios e sem apoios dignos, vivem situações que por vezes duram anos e anos, de completa dedicação/alienação de si mesmos. É isto que os enfermeiros também carregam nas suas preocupações do dia a dia enquanto não "queimam". Não pretendem ser heroínas e heróis, gostam do que fazem... Mas precisam de o fazer com condições dignas para os profissionais, para aqueles de quem cuidam, para o sistema que integram, para o país em que vivemos todos. O texto é longo mas peço-vos que tenham paciência para lê-lo. Trata-se de denunciar uma situação de que se fala muito menos do que interessa a todos nós. Aqui vai portanto:
A CASA DOS OUTROS
A D. Maria tem 47 anos... e um cancro de um ovário. O marido, já reformado,
quis satisfazer-lhe o desejo de não morrer num hospital.
Têm uma filha, a acabar o curso na universidade: boa aluna, em altura de
exames... precisa de estudar e a sua mãe está a terminar os seus dias de vida, no quarto ao lado...
A D. Maria está em cuidados paliativos... e sabe disso!
Já não quer comer, bebe apenas alguns goles de água. Tem um soro para que lhe possamos dar medicamentos. Uma perfusão permanente de morfina, cuja eficácia já há muito, deixou de ser esperada. A barriga... como descrever? Tem uma colostomia que mal funciona... está inchada, como um balão que vai rebentar.. e, de facto, começa a rebentar: abrem-se fístulas espontaneamente e as fezes saem por todo o lado. O cheiro? Não consigo descrever! O corpo? Pele e osso, para ser mais exacta! Há metástases no fígado, no pulmão... a respiração é ofegante... já lá vão 5 semanas...
Diariamente, desloco-me a casa da D. Maria, duas ou três vezes: para dar
medicação, para cuidar daquela barriga... para falar com ela, para dar o apoio possível ao marido e à filha, que tentam fazer o que sabem e o que podem . O sofrimento? É grande... de todos! Mas eu sou enfermeira... não é suposto que me seja difícil ver o sofrimento dos outros! Tudo se torna mais difícil quando estou a sós com a D. Maria, que me agarra as mãos e me pede insistentemente... que termine com a vida dela! Os apelos são cada vez mais frequentes, mais desesperados: 'Por favor! Se tem compaixão de mim, injecte-me qualquer coisa para terminar de vez com esta agonia! Pela sua felicidade, por favor, acabe com a minha vida'... E eu tenho compaixão... mas nada posso fazer! A dor não se consegue controlar por estes meios, não disponho de tempo para tentar outros, é impossível cuidar dela sem lhe provocar ainda mais dores...
O que faz uma enfermeira?
Vai-se embora dali de cada vez a sentir-se mais inútil... A sentir-se incapaz... A
ouvir repetidamente aquele apelo... e a desejar, embora lhe custe muito, que a eutanásia fosse possível! Mas, se fosse possível... e a praticasse, como iria para casa?
Mas para quê falar disto?... Os enfermeiros não
podem perder-se em sentimentos!
Continuo o meu plano de trabalho domiciliário: Agora o meu próximo doente "vive" numa
barraca . Chove dentro, há ratos, pulgas, lixo... o cheiro faz - nos ter vontade de fazer meia volta de imediato... O Sr. José tem 87 anos e vive sozinho. A auxiliar domiciliária passa por lá uma vez por semana mas pouco pode fazer para melhorar o conforto ou o aspecto da "habitação" do Sr. José que tem uma úlcera da perna direita, bastante infectada. Tenho que fazer-lhe o penso. Não há água... nem sequer as mãos posso lavar. Nem antes, nem depois do penso. Passo-as por álcool antes e, de novo, à saída e lavo-as na próxima casa em que encontre água corrente.
Chove a cântaros. Volto para o carro, (é o meu carro e recebo uma ninharia para usá-lo porque não há carros de serviço suficientes, nem para metade do serviço) e avanço pela lama com medo de ficar enterrada, de derrapar e ter um acidente (não há seguro que cubra este acidente "em serviço"). Chego ao próximo domicílio em que vou prestar cuidados, não há lugar para estacionar perto, deixo o carro a mais de 300 metros, carrego as malas do material, o guarda chuva, desloco-me devagar, o cansaço vai tomando conta de mim e ainda não vou a meio do dia... Mas, para quê falar disto?... A minha profissão não é considerada de risco e nem penosa! Ainda há quem pense que o trabalho que faço não necessita sequer, de qualificação profissional... Chego à porta da D. Joaquina, 92 anos, vive numas águas furtadas, sem elevador. Subo 5 lances de escadas de madeira, apodrecidas, escuras, bafientas. O prédio parece cenário de um filme de terror, não se ouve ninguém enquanto subo pisando devagar, com medo que alguma tábua dos degraus se parta e eu fique, sem socorro, pendurada nem sei como. Nem vi se ali dentro, tenho rede no telemóvel... nem sei se conseguiria chegar-lhe... Carrego com as malas do material... Chego por fim, à pequena mansarda do velho prédio! A D. Joaquina vive com uma irmã pouco mais nova, D. Maria, naquele espaço exíguo. Teve um AVC e o hospital deu-lhe alta passadas 72 horas. Ficou em casa, sem cuidados, até que a irmã se queixou a uma vizinha, que fez o favor de ir ao Centro de Saúde comunicar a situação das duas senhoras. Do Hospital, mais uma vez, se esqueceram de notificar da alta. Quando lá fui pela primeira vez, constatei as enormes úlceras de pressão que tenho vindo a tratar ali. O tecto é baixo, inclinado, a cama está encostada à parede. Para lhe cuidar as feridas tenho que me pôr de joelhos no chão e ficar inclinada, sobre a cama. Não tenho apoio para os materiais que utilizo e a D. Maria pouco me pode ajudar, porque se move com dificuldade e quase não vê. Quando me endireito, as minhas costas doem... tenho as pernas dormentes... Pelo menos há água. Tiro o avental que enrolo para levar comigo, assim como o lixo tirado dos pensos, porque só posso depositar aquele material contaminado, com relativa segurança, no Centro de Saúde. Lavo as mãos, puxo do sorriso de que sou mais capaz, para me despedir até daqui a dois dias, pego nas malas, desço as escadas com os mesmos temores e cuidados com que as subi... continua a chover lá fora... mas não posso perder tempo. Faço, de novo à chuva, o caminho de regresso ao carro equilibrando a custo, carregos e guarda chuva! Pensando, apesar de tudo, como é bom andar... Perante as vidas que as nossas visitas nos fazem pressentir e apesar de tudo, sentir, não há queixas que os enfermeiros considerem justas!
Próximo desafio: a Helena! Toxicodependente... tem SIDA, continua a
consumir... com sorte, ainda encontro o traficante lá em casa... As enfermeiras não podem ter medo! Uff! Não encontrei o traficante e a Helena hoje até estava mais acordada e com melhor humor do que é habitual. Depois desta visita, paro num pequeno café, onde consigo estacionar perto da porta. Continua a chover e já vou atrasada no serviço. À pressa e maquinalmente vou sorvendo o galão e mastigando o pão com queijo que me servirão de almoço... Não posso pensar enquanto como porque, se começo a recordar-me do que vivi nesta manhã, ou em outras parecidas, não há nada que eu consiga engolir.
Continuo: o Sr. Manuel é diabético, divorciado, tem 50 anos, foi amputado
de uma perna, vive sozinho num 3º andar também sem elevador. Há 2 anos que não sai de casa: como fazer? Convive com poucas pessoas das quais a maioria, são as enfermeiras e eu, uma delas! Precisa de conversar... e eu sei reconhecer essa necessidade humana básica de comunicação, para cuja resposta fui muito bem preparada e continuo a ser, em todas as publicações e actualizações, que me obrigo a conhecer... como posso então dizer-lhe que esse cuidado básico, não faz parte da estatística que ainda tenho que preencher quando chegar ao Centro de Saúde, depois das mais 6 pessoas que ainda me falta cuidar e que não faz parte das contabilidades dos contadores do meu tempo, o tempo necessário para ficar ali a ouvi-lo? Despeço-me, o mais delicadamente que posso e saio, tentando ignorar o mal estar que me provoca o facto de apenas me contarem as injecções, os pensos e muito pouco mais, quando me exigem que me dê conta de tudo o resto e, depois, o considere... supérfluo! Sigo para as casas dos outros, onde vou encontrar outras dores, outras chagas, outros desesperos, outras solidões e confrontar-me, de todas as vezes, com a minha incapacidade para fazer mais, para fazer melhor, apesar de me sentir a dar do que sei e do que sou, até ao limite das minhas forças...
Mas com quem vou eu falar da solidão do outro, da minha impotência, das dores nas costas, dos meus medos, das várias inseguranças, daquele ventre desfeito, dos familiares exaustos, da tristeza, da compaixão... das súplicas de eutanásia, das dúvidas sobre o valor e os valores da vida??? E quem vai entender, depois, de incómodos de chuva, de frio, de sol, de calor, de maus cheiros, de dores nas minhas pernas... do material tirado dos pensos a conspurcar o meu carro... é nele que, depois de sair do trabalho, tenho que ir buscar a minha filha à escola!!! Já estou atrasada!!!
Não, a penosidade do que faço e os riscos que me passam pela cabeça, devem ser ilusão minha... Soube que nos anos 80, havia um movimento no sentido de se considerar Enfermagem como profissão de risco mas isso, foi completamente abandonado nos tempos que correm, em que o maior risco passou a ser o de perder o emprego... O emprego... porque o trabalho é cada vez mais... Ah! E os convites ao empreendedorismo dos enfermeiros... Podemos ser todos empresários e tirar desta miséria que vemos e sentimos, o proveito mais proveitoso que se pode imaginar... depois de as grandes empresas privadas que constroem hospitais de luxo, onde os meus doentes nunca podem entrar, garantirem que as suas actividades geram lucros para os seus accionistas...
Não, as enfermeiras não se revoltam. Não têm tempo!
Sobretudo, as enfermeiras não choram! Não têm lágrimas!

Mas sabem?... as lágrimas que mais doem são aquelas que não correm!'

12 comentários:

Anónimo disse...

Li-o todo. E com um aperto no coração. No nosso conforto quotidiano , com demasiada facilidade nos esquecemos das dificuldades terríveis que são o pão nosso de cada dia de tantos outros. Mas o que fazer ? Como apoiar NA PRÁTICA pessoas como essa enfermeira e, ainda mais, os desaventurados de quem ela se ocupa ? Creio, como cidadão, que a resposta só pode ser política : escolhermos, para por nós tomarem decisóes, aqueles que mais garantias nos derem de não se perderem em dispustas politiqueiras e tomarem as decisões que se impoem para melhorar as condições de vida dos mais desafortunados.

José-Carlos (Transdisciplinar)

mdsol disse...

Um nó na garganta!
Fizeste bem em publicar!

:))

cristal disse...

Claro que a resposta só pode ser política. Mas as soluções tardam e as opções dos responsáveis continuam a deixar muito a desejar. Entretanto, as pessoas que não podem ignorar as realidades agravadas pelas condições geradas por aquelas opções vão sendo "trituradas". É o termo! E não é com soluções de misericórdia ou de caridadezinha que os problemas se resolvem. Conheço situações em que a ajuda social é pedida dezenas e dezenas de vezes pela enfermeira e por vezes nunca chega ou chega demasiado tarde.

mdsol disse...

linkei-te

Violeta disse...

Sempre admirei o trabalho dos enfermeiros.
A sua crónica deixa-me com um travo na garganta.

Anónimo disse...

Vou procurar ser sucinta, até porquê a Mdsol (sobre muitas coisas), a Cristal e a tal enfermeira disseram muito e bem. O relato de um dia dessa enfermeira é contundente. Guardadas as diferenças, há outras áreas de apoio à quem precisa (os que nada têm) em que os profissionais (ou não, agora e há muito 'voluntariado'... mas nem vou por aí) passam por dificuldades e 'aventuras' parecidas. Continuará a haver gente vocacionada para o trabalho que não traz riqueza nem reconhecimento, mas esses precisam muito de apoio. E não perguntarem no vazio 'Para quê falar disto?'..

Uma comunidade de apoio(ou rede). A inter-ajuda, diversas áreas do saber a trabalharem e apoiarem-se de forma conjugada(utopias!), numa sinergia que dignifique quem dá e quem recebe ajuda...e vai se ver que esse dar e receber por vezes muda de mãos.
Então não pode alguém, tão próximo da morte e cheio de dores sentir também a dor de uma enfermeira e dirigir-lhe duas frases cheias de sensibilidade e o saber de uma vida? Dignifica os dois. Ou uma toxicodependente com sida agradecer de modo tão sicero a dedicação, que isso lhes fique no coração?
Mas para isso a enfermeira tem de ser capaz de ver ali um ser humano, desarmar um pouquinho e para lá do material infectado, ver dignidade e permitir-se, por momentos (aqueles que marcam e significam) ser Pessoa com um Outro.
Bem sei que essas 'redes de apoio', blá, blá, blá já existem. Funcionam bem??? Nem sempre. Funcionam de modo 'institucional', sabe-se lá o que acontece com os ideais então. E as tais profissões de segunda, terceira que ficam patentes...há falta de gente com fortes valores..ou eles estão por aí, sem apoios nenhuns a fazerem o que podem e não podem. E quebram mesmo. Sozinhos quebramos e não vamos adiante naquilo a que nos propomos. E daí a sentir que de nada vale tanto esforço, que nada somos, é um passo.

Talvez então o lugar para a Política(com P grande) como resposta, de que fala o José-Carlos quando indaga 'como apoiar na prática essa enfermeira e de quem ela se ocupa?'.... longe das 'disputas politiqueiras'(isso já parece pequenez).

Desculpem, falei demais. Tinha eu separado umas palavras e canções 'para quem...ele sabe', esperando a oportunidade...
Esta canção é para ele, mas vem à propósito e vou ilustrar o que se disse aqui. Afinal, é o que todos precisamos; partilhar, sorrir, importarmo-nos, pegarmos a mão. Partilha do tempo, vida, amor. "Voce não precisa sentir-se em casa?"

Lembram-se disso?

"Give a little bit
Give a little bit of your love to me
Give a little bit
I'll give a little bit of my love to you
There's so much that we need to share
So send a smile and show you care

I'll give a little bit
I'll give a little bit of my life for you
So give a little bit
Give a little bit of your time to me
See the man with the lonely eyes
Take his hand, you'll be surprised

Give a little bit
Give a little bit of your love to me
I'll give a little bit of my life for you
Now's the time that we need to share
So find yourself, we're on our way back home

Going home
Don't you need to feel at home?
Oh yeah, we gotta sing"

(Supertramp, Give a little bit)
http://www.youtube.com/watch?v=dR6G9Q4cmTE&feature=related

***
(comentário do Branco no Branco, com referências à 'A casa dos outros')

Tinta Azul disse...

Dói, porque é a realidade. A real.

Justine disse...

Dilacerante, esta realidade. Que pouca gente conhece, ou quer conhecer.
É importante divulgar, como o estás a fazer.

jorge esteves disse...

Um pungente relato que torna inúteis as palavras!...
(embora que possa parecer paradoxal, o dia ficou-me mais preenchido...)

abraços!

Anónimo disse...

Acabei de ler com um nó na garganta que me impede de comentar. Volto amanhã.

M. disse...

Que dizer? Um murro no estômago. Fizeste bem em publicar.

bettips disse...

Lancinante.
Não há caridade: há responsabilidade do Estado, da Sociedade civil, dos eleitos, dos falantes.
Cirandam os governos e os donos do poder, e morre-se, e sofre-se.
E "os eles" são mesmo iguais uns aos outros.

Ter a certeza de.
Ter a certeza de que vale a pena, para outros que virão. Esta luta sempre e agora.
Bj